No passado dia 31 de Janeiro, o escritor Valter Hugo Mãe marcou presença no
Externato D. Afonso Henriques. O evento intitulado “A Humanização das
Palavras”, foi organizado pela equipa da biblioteca da escola para a qual a
presença de Valter Hugo era uma ideia já antiga. Para José Augusto Pereira,
professor e moderador no evento, este tipo de iniciativa é um incentivo dos
alunos à leitura até porque sentem curiosidade em saber mais sobre o autor
antes de o conhecerem.
Dividida
em duas sessões, uma apenas para a Comunidade do Externato e outra para o
público em geral, o escritor falou acerca do seu último trabalho
“Desumanização” e um pouco sobre a sua vida, o que o levou a ser escritor. A
sessão contou ainda com leituras de poemas de Valter Hugo pelos alunos do
Externato e interpretações musicais por Gisela Borges, ex-aluna. O escritor
sempre acessível tentou responder a todas as solicitações do público e abordou
questões preocupantes na comunidade escolar como, por exemplo, o caso do bullying.
Em jeito de humor contou ainda a sua paixão por Adriana Calcanhoto, cantora
brasileira, para a qual escreveu um livro que era uma declaração de amor à
mesma. Tudo para transmitir a ideia de, segundo as palavras do próprio, “(…) se ela se fosse embora eu não tinha mais
alegria. Mas depois descobri que estava enganado. Ela foi embora e eu fiquei na
mesma alegre. Nós não devemos ficar muito tempo a lamentar por quem não nos
quer; não nos querem pronto a gente arranja quem queira.”
No
fim da palestra a assistência teve a oportunidade de conversar com o autor,
tirar fotos ou pedir autógrafos para os livros. Quem não os tivesse podia
adquirir na cerimónia já que a organização colocou vários à venda.
O
Notícias de Resende, nomeadamente os colaboradores João Pereira e Raquel
Evangelina, esteve à conversa com o autor. A entrevista é a que segue abaixo
transcrita.
Notícias de Resende -
É importante para si este tipo de ações em escolas, junto das comunidades
escolares, principalmente alunos? O que significa para si estar em contacto com
os alunos?
Valter Hugo Mãe-
É importante, sobretudo porque eu acredito verdadeiramente que vale a pena no
tempo da formação nós seduzirmos as pessoas para a importância do livro, da
leitura. Por vezes tenho dito que de alguma forma o livro é o ginásio do
pensamento, da cabeça, e talvez importe menos que tenhamos o corpo bem
trabalhado se tivermos o pensamento raquítico. Então falar com os alunos nestas
idades em que eles aina podem ser sensíveis, deixarem-se seduzir, deixarem-se apaixonar
pela importância do conhecimento é muito importante, por isso a mim
interessa-me muito vir aqui, estou muito contente por estar aqui.
N.R.-
Sobre a atualidade nacional, escreveu recentemente no seu facebook e passo a
citar, “(…) ainda não consegui
ultrapassar o nojo que sinto pela tentativa da jsd para a retirada de direitos
a uma considerável quantidade de crianças deste país”, isto sobre o
Referendo à adoção e co-adoção por casais homossexuais. Não concorda com este
referendo? Porquê?
V.H.M.-
Não concordo porque acho que os direitos fundamentais das pessoas não se podem
referendar. Não podemos perguntar aos outros se acham que devemos ou não ter a
nossa dignidade. A dignidade não é uma questão que se coloque, que se pergunte
a ninguém, é uma questão que tem de ser absolutamente defendida. E não concordo
que digamos que estão em causa os casais homossexuais porque nós também não
sabemos se nos casais entre homem e mulher também não está em causa alguém
homossexual. Em relação a um casal nós nunca temos a noção da sua sexualidade.
Em última análise um casal normal nem sequer tem relações. Os casais normais
têm dois ou três filhos e depois não fazem mais sexo. Por isso não está em
causa a sexualidade das pessoas o que está em causa é apenas o facto de duas
pessoas comungarem, terem uma vida em comum e por acaso alguma delas ter um
filho. Como é que esteja criança fica? Uma criança que esteja habituada, que
cresça com dois pais ou duas mães, com um pai e mãe, ou só um pai, só uma mãe
ou até mesmo com os avós, a realidade para ela é absolutamente normal. Portanto
aquilo que caus impressão às pessoas não é o universo das crianças, é
exactamente o dos adultos, do preconceito que domina esse universo. E acho que
nós não podemos perguntar, não devemos ser nós a decidir a felicidade de uma
família alheia. Até porque em última análise todas as famílias são esquisitas,
todas são disfuncionais, todas têm problemas, nenhuma é perfeita e por isso não
podemos legislar no sentido de obrigar a que as famílias sejam perfeitas.
N.R.-
Escreveu ainda também, recentemente, no seu facebook, sobre o suicídio de um
jovem de 15 anos alegadamente por motivos de “bullying” na sua escola. Esta questão
é um tema que o preocupa e que acha que deveria ter mais atenção por parte das
tutelas das escolas?
V.H.M.-
Sim, exactamente nesta idade de crescimento e de formação em que a
personalidade ainda se esta a afirmar e de alguma forma as pessoas estão a tentar
encontrar a sua própria segurança, a sua própria auto-estima é muito importante
que nós estejamos atentos. Talvez, mais importante que aprenderem matemática, é
aprenderem o respeito, aprenderem no fundo essa coisa absolutamente necessária
de percebermos a diferença que temos dos outros e por isso necessariamente
reclamarmos o direito à nossa diferença e respeitarmos o direito à diferença
dos outros.
N.R.-
Lançou, recentemente, o livro “Desumanização”, o seu sexto romance. Qual é a
questão principal deste livro? Pode-nos falar um pouco sobre a história do
mesmo?
V.H.M.-
Este livro é narrado por uma menina. Toda a história é contada no feminino por
uma criança que vai dos 11 aos 14 anos. Esta criança a Halldora perde a sua
irmã gémea e todo o texto é um modo de pensar acerca da solidão, ou seja, do
estar longe, viver num sítio recôndito como são os fiordes islandeses e além de
estar longe estar substancialmente só. Ajudou-me no fundo a pensar no que é uma
espécie de espiritualização do lugar e de ter a própria natureza como
companhia, digamos assim.
N.R.-
Dosse numa entrevista que uma das explicações dadas para a escolha deste título
foi pelo facto de termos que nos tornar mais desumanos para sobreviver. No entanto
ainda recentemente foi noticiado que ajudou um casal. Ou seja afinal acha que
temos mesmo que nos “desapegar” e pensar mais em nós ou ainda acredita na
bondade humana?
V.H.M.-
O que eu dizia é que infelizmente a resistência perante o mundo implica que nós
desçamos as nossas sensibilidades, ou seja, a pessoa demasiadamente sensível
não consegue nem ser feliz, nem sobreviver muito tempo e então frustantemente
todos nós somos obrigados a robustecer-nos, a sermos menos sensíveis para
conseguirmos de alguma forma enfrentar a vida tal como ela é, com as suas
dificuldades, a sua violência e isso é uma das frustrações que eu encontro para
a humanidade que tem que ver com os nós sabermos muito bem como poderíamos ser
melhores mas não sermos capazes de chegar aí porque a vida simplesmente não
deixa. Todo o sistema, como está montado e tudo para o que a vida nos prepara
propende para um certo sofrimento, um esforço contínuo… A felicidade nunca é
senão uma coisa passageira, e a tristeza ajuda-nos muitas vezes a resolver
problemas nossos. A tristeza contínua não é humana é uma desumanidade.
N.R.-
O romance passa-se na Islândia. Porquê a escolha deste país? O que o liga a um
país tão distante de Portugal? Porque não África, onde tem as suas raízes?
V.H.M.- Eu
quis muito falar na Islândia porque o país tem essa dimensão agreste quase
abusiva para se lá ficar. Eu imagino que as primeiras pessoas quando
descobriram a Islândia no século X, devem ter tido problemas mentais quando
olharam para aquele gelo e disseram “Isto é interessante! É bonito! Vou ficar a
viver aqui.” A viver como? Porquê? Viver num sítio tão inóspito. E ao fim de
uns séculos a sociedade islandesa, enfrentando sempre esse desafio da
intempérie, do frio e do longe, é muito cívica e educada. E eu quis perceber
como é que estas pessoas que vivem num local tão baldio, como é que esta gente
se disciplinou desta forma. Eu admiro-os muito.
N.R.-
Foi galardoado várias vezes, com vários prémios. Entre eles, o Prémio Almeida
Garret em 1999, Prémio Literário José Saramago da Fundação Círculo de Leitores
em 2007 e, mais recentemente, o Prémio Portugal Telecom de Literatura
Portuguesa, 2012. Todos eles são importantes e reconhecedores do seu trabalho,
mas permita-me que destaque o Prémio Literário José Saramago. O que sentiu
quando foi reconhecido com o Prémio que tem o nome do escritor português que
foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura?
V.H.M.-
Fiquei muito honrado também porque o José Saramago era uma pessoa que eu
admirava muito pela sua atitude de incómodo permanente. Era um homem que se
incomodava permanentemente com as questões do quotidiano, da nossa sociedade,
da nossa política e eu admiro muito isso. Admiro muito as pessoas que têm a
coragem de ter uma opinião, de pensar de boa-fé e honestamente sobre os
assuntos. Acho que o pior que podemos ter é gente boa calada porque os maus
refilam sempre e gente boa calada é como se não servisse para nada. Tive muito
orgulho em ganhar o prémio Saramago e poder conhecê-lo um pouco melhor e
perceber que toda a obra dele foi uma proposta de boa-fé para que pensemos
melhor em sociedade.
N.R.-
Falando em Saramago, quais são os autores que o influenciam?
V.H.M.-
Eu li e admiro muito Kafka, por exemplo, mas também li muita poesia. Aliás a
poesia é a minha grande biblioteca e então os meus autores foram sempre o
Herberto Helder, o Luis Miguel Nava, o Al Berto, a Adília Lopes, Sharon Olds,
Walt Whitman, uma quantidade enorme de gente. Mas a maior parte das minhas
influências vieram da poesia mas também vêm muito das artes plásticas e da
música. Sou muito ligado, por exemplo, à música e à pintura e às vezes aquilo
que escrevo tem mais que ver com quadros que vi ou com pintores que admiro
muito ou com músicos como a Billie Holiday que é uma intérprete que eu adoro. E
às vezes acho que aquilo que escrevo tenta-se aproximar daquilo que eu sinto ou
pressinto nas artes paralelas que não propriamente a literatura.
N.R.-
O Valter é escritor, artista plástico, cantor, baterista, dj entre outros. Se
tivesse que escolher apenas uma arte. Seria a escrita a escolhida?
V.H.M.-
Sim, eu sou escritor. Todo o resto faço porque posso fazer, me apetece ou
porque gosto. Mas é uma tentativa, uma experiência, não é algo que eu faça
profissionalmente. Não é algo que eu proponha às pessoas para levarem demasiado
a sério, é uma experiência.
N.R.-
Para terminar tem já algum romance em vista para breve? Ou alguma obra de
poesia?
V.H.M.-
Estou a começar neste momento uma história nova, por isso ainda estou a fase de
uns pequenos apontamentos, de escolher alguns personagens e por isso ainda
estou a olhar para as pessoas, a ver se faço um casting. Estou a fazer um
casting. Às vezes conheço pessoas que me inspiram, figuras engraçadas, estou
nessa fase. Ainda não tenho nada de muito concreto mas estou a deixar-me
seduzir por alguma coisa…
João Pereira e Raquel Evangelina
Fotografia: Foto Ideal